domingo, 24 de dezembro de 2017

Os sete tipos de paz dos Aymara



Trago aqui neste Natal, meu desejo de paz dos índios aymara do altiplano boliviano.
Segundo os aymara, cada pessoa para estar bem com o seu mundo, precisa de sete diferentes tipos de paz.

A primeira,  é a paz “para cima”,  com Deus,  com os espíritos,  com os antepassados. É a paz com a dimensão espiritual, metafísica, como alguns gostam de chamar, é a paz com os mistérios do mundo.
 
A segunda, é a paz “para baixo”, com a terra que pisamos. No tempo dos aymara, essa terra era um simples local em que eles plantavam. Hoje, temos um maiúsculo  Planeta. Não é possível estar em paz nos tempos de hoje se não estivermos em paz para cima, com os espíritos, e para baixo, com a Terra, com o Planeta, a paz daqueles que não destrõem mas respeitam o Planeta como a nossa casa. A paz do equilíbrio ecológico.

A terceira, é a paz “para frente”. Para os aymara, a paz “para frente”, era a tranquilidade com o próprio passado. Com a sabedoria deles, o futuro está atrás, porque o futuro é desconhecido. E ninguém está em paz se não tem paz com o seu passado, se vive com remorsos.
 
A quarta,  é a
 “paz para trás”, que é a paz do futuro, sem medo do que vai acontecer, sem temer  o que virá pela frente.

A quinta paz defendida pelos  aymara era  com “o lado direito”, que é a paz com a família e com  quem convivemos permanentemente.

A sexta paz era com “o lado esquerdo”, que seriam nossos vizinhos pois não adianta ter  a paz apenas dentro de casa; é preciso ter paz com aqueles que estão ao lado também. Só que no tempo dos aymara, os vizinhos eram alguns grupos esparsos de outros indígenas. Hoje,  são todos os habitantes do Planeta.

A sétima paz é a paz “para dentro”, a paz que cada um tem de ter consigo mesmo, porque se pode ter todas as outras formas e não estar, internamente em paz.

Desejo a todos, as sete formas diferentes de paz que os aymara defendem,

Que esta paz de sete formas diferentes chegue a cada um em cada canto desse planeta. FELIZ NATAL A TODOS!

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Nossa História não começa em 1988

Nossa História não começa em 1988

Mas o que fazer quando a última instituição de proteção a direitos fundamentais do Estado sucumbe?





* Maria Rachel Coelho


Assino este artigo com o intuito de esclarecer os motivos pelos quais se instaurou esse cenário jurídico de fragilidade para as demarcações de terras indígenas, iniciando exatamente pela competência desta demarcação sob pena de ofensa ao Princípio Federativo da Separação dos Poderes:

O processo de demarcação, regulamentado pelo Decreto nº 1775/96, é o meio administrativo para identificar e sinalizar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas. Nos termos do Decreto, a regularização fundiária de terras indígenas tradicionalmente ocupadas compreende as seguintes etapas, de competência do Poder Executivo:

i) Estudos de identificação e delimitação, a cargo da Funai;
ii) Contraditório administrativo;
iii) Declaração dos limites, a cargo do Ministro da Justiça;
iv) Demarcação física, a cargo da Funai;
v) Levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos ocupantes não-índios, a cargo da Funai, realizado em conjunto com o cadastro dos ocupantes não-índios, a cargo do Incra;
vi) Homologação da demarcação, a cargo da Presidência da República;
vii) Retirada de ocupantes não-índios, com pagamento de benfeitorias consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra;
viii) Registro das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, a cargo da Funai; e
ix) Interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados, a cargo da Funai.

É certo que já se debateu  a possibilidade de controle judicial desse ato administrativo discricionário. E por vezes, os pedidos são da própria FUNAI.
           
Também o Judiciário não pode eximir-se de julgar qualquer demanda em respeito ao  artigo 5º , inciso XXXV, da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

No entanto, para se reconhecer a possibilidade jurídica do pedido, é preciso que haja negativa expressa do ordenamento jurídico quanto ao tema versado, ou seja, que o Executivo viole a legalidade. Desta forma, ao Judiciário cabe restaurar a ordem jurídica mas nunca adentrando o mérito, se uma T.I deve ser demarcada ou não, sob pena de invasão a competência do Executivo.

Aliás, no julgamento da PET 3.388 (T.I. Raposa Serra do Sol), o STF identificou o caráter de direito fundamental que reveste a demarcação das terras indígenas, tendo em vista ser a “concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica”, ancorada na materialização do princípio da igualdade, conforme se observa da ementa do acórdão:

“Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural.”

“DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se torna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (parágrafo 6º do artigo 231 da CF).” (grifo nosso)

O STF entendeu, ainda, nesse julgamento,  que a demarcação de terras indígenas tem exclusivo caráter de atribuição do Poder Executivo: “Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente”.

Realizamos agora, um estudo dos casos: Raposa Serra do Sol (PET. nº 3388/RR, 2009) e Guyrároka, ( RMS nº 29.087/DF, 2014), destacando o critério do “marco temporal da ocupação” a partir desses julgados.

Cabe, inicialmente, um histórico constitucional, em tempos de Constitucionalização do Direito.

A Constituição de 1934 foi a primeira a dar tratamento constitucional ao direito dos povos indígenas à terra (nomeados, à época, silvícolas), determinando a propriedade da União e conferindo-lhe natureza jurídica de direito natural, de forma adequada, por ser um direito preexistente ao próprio reconhecimento constitucional, reforçando sua natureza originária.

As Constituições subseqüentes não apresentaram mudanças significativas, repetindo o dispositivo constitucional de 1934.

Com a promulgação da Constituição de 1988, reafirmou-se e valorizou-se o dispositivo especificamente por meio do artigo 231 que dispõe que são direitos originários aqueles exercidos pelos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar os bens, e ainda que essas terras são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis, complementando seu § 1º, “terras por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,  as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

O texto constitucional é bastante claro ao definir que são terras indígenas aquelas que os indígenas tradicionalmente ocupam. É taxativo ao afirmar que sobre elas os indígenas detêm direitos originários, ou seja, anteriores à própria Constituição. Por isso o texto constitucional atribui à União, por meio de seu braço executivo, a competência de delimitar essas terras, seguindo um longo processo administrativo demarcatório pelo qual caberia dizer se uma terra é, ou não, terra indígena. Ocorre que em seus atos das disposições constitucionais transitórios, estabeleceu-se no artigo 67 que a União concluiria a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. Esse prazo não só foi ignorado para muitas terras originalmente ocupadas, como o Supremo Tribunal Federal iniciou uma interpretação restritiva do artigo 231 e desde 2014, vem violando a proteção normativo-constitucional ao direito indígena à terra, senão, vejamos:

O caso Raposa Serra do Sol foi um leading case em matéria de demarcação de terras indígenas levado ao Supremo. O objeto da demanda, consistia na tentativa de impugnar a Portaria nº 534/2005, do Ministro da Justiça, homologada pelo Presidente Lula, em 15 de abril de 2005, a qual promoveu a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no estado de Roraima. O caso se desenvolveu num contexto em que, após 2005, uma enxurrada de ações surgiram visando impugnar o ato demarcatório, proveniente especialmente de arrozeiros e do Governo do Estado de Roraima. O caso teve grande repercussão principalmente pelo interesse econômico na área. (O Brasil detém a maior reserva de nióbio do mundo com 98,43% e na região se encontra uma significante reserva seguida de Minas Gerais, Araxá e Tapira e Goiás, Catalão e Ouvidor).

O Supremo Tribunal Federal decidiu, a partir do voto de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, pelo reconhecimento da legalidade do processo administrativo da demarcação. Tampouco restringiu a demarcação da terra ao método de ilhas, ao contrário, garantiu a contiguidade na demarcação.

Por outro lado, a decisão estabeleceu o chamado “Conteúdo Positivo do Ato de Demarcação das Terras Indígenas”, pelo qual inovou na ordem jurídica ao criar parâmetros para a demarcação da terra naquele caso concreto, além de outras nulidades como a imposição pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito de dezenove condicionantes(19) condicionantes ofendendo o Princípio da Congruência, segundo o qual, o juiz está adstrito ao pedido, e o pedido ali era o reconhecimento da demarcação em área contínua.

Já o Ministro Ayres Britto definiu quatro critérios para o reconhecimento de determinada terra como terra indígena. Daremos destaque para dois deles: o marco da tradicionalidade da ocupação, e o marco temporal da ocupação.

De acordo com o primeiro, para que uma terra indígena possa ser considerada tradicional, as comunidades indígenas devem demonstrar o caráter de perdurabilidade de sua relação com a terra, em sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições, costumes e subsistência. O critério do marco tradicional da ocupação estabelece que os indígenas devem preencher, basicamente dois elementos: um imaterial (espiritual, ancestral, psicológico) e outro material (da relação direta com a terra, e.g. pesca, caça, etc.). Esse critério está em plena consonância com a interpretação gramatical do artigo 231 da Constituição da República que estabelece em seu parágrafo 1º que, permitam-me, repetir:

“Art. 231 - São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, (...):

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (grifos meus). ”

O segundo critério cria o marco temporal da ocupação que estabelece que as terras indígenas serão aquelas nas quais houve efetiva ocupação, pelas populações indígenas, na data da promulgação da Constituição (05 de outubro de 1988). Este parâmetro chama a atenção, em primeiro lugar, por restringir o direito à terra para aquém do trazido, gramaticalmente, no próprio texto constitucional.

A Constituição diz que são terras indígenas aquelas habitadas pelos índios em caráter permanente, mas não exige que eles a estivessem ocupando, necessariamente, na data de sua promulgação. Justamente pelos critérios trazidos pelo marco da tradicionalidade, além da possibilidade do chamado esbulho renitente, qual seja: as recorrentes situações em que os indígenas foram expulsos de suas terras pelos não índios, e a elas foram impedidos de regressar, ainda que com a terra guardassem as condições necessárias – materiais e imateriais – para a configuração da ocupação tradicional.

Os outros dois critérios foram: o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional, que descreve a utilidade prática a que deve servir a terra tradicionalmente ocupada, ressaltando o critério da ancestralidade e o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”, quer dizer que a aplicação do princípio da proporcionalidade em matéria indígena, ganha um conteúdo extensivo.

Note-se que se trata das terras ocupadas naquela data, nas palavras do Relator: “não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. ”

A decisão apresenta um vício grave em restringir deliberadamente o direito originário à terra por meio de um marco temporal  que não guarda qualquer vínculo racional com nosso sistema constitucional, trazendo  também o vício da anti-historicidade, ignorando o passado indigenista brasileiro e o caráter originário de seus direitos, assim como o histórico compartilhado das graves violações dos direitos humanos desses povos por parte de particulares e do próprio Estado.

Por fim,  essa decisão produziu efeito restrito às partes processuais daquele caso concreto. Todavia, o caso foi apenas um impulso inicial da tese jurídica do marco temporal da ocupação, como veremos adiante.

Após cinco anos, foi interposto no Supremo Tribunal Federal o Recurso Ordinário 29.087 contra um acórdão do Superior Tribunal de Justiça que denegou a Ordem de Segurança pretendida por um agricultor de Mato Grosso do Sul o qual pleiteava a anulação da Portaria 3.219 de 2009 emitida pelo Ministro da Justiça, pela qual foi declarada a posse permanente da Terra Indígena Guyraroká aos Guarani-Kaiowá que nela tradicionalmente habitavam, terra essa na qual se situava imóvel rural supostamente titularizado pelo recorrente.

Ao recorrer ao STF, o recorrente alegou que a portaria, apontada como ato coator, teria violado seu direito líquido e certo, pois teria declarado como terra indígena gleba de sua propriedade e sobre a qual exercia com exclusividade a posse, inexistindo índios no local, ao menos desde o final da década de 1940.

O Ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, de forma brilhante, afirmou que para discutir questão de posse de terras submetidas a processo demarcatório seria necessária dilação probatória, o que impediria a ação de ser decidida em sede de Mandado de Segurança. Ademais, alegou o relator a inexistência de efeito vinculante erga omnes do caso Raposa Serra do Sol, resultando, portanto, na impossibilidade de extensão dos critérios daquele caso para a presente demanda.

No entanto, o Ministro Gilmar Mendes, após pedido de vista, trouxe um voto divergente tornando-se o novo relator do caso. Concluiu ele que os documentos (laudo da Funai) seriam suficientes para determinar que a comunidade indígena dos Guarani-Kaiowá não habitava a área declarada há mais de setenta anos (desde o final da década de 1940), assim entendeu necessário conjugar as referidas ressalvas institucionais do emblemático caso Raposa Serra do Sol, especialmente as pertinentes à averiguação da posse tradicional indígena na região, sugerindo assim que o preestabelecido marco temporal para configurar a posse, qual seja, a data da promulgação da Constituição (05 de outubro de 1988), seria suficiente ao reconhecimento dos direitos às terras reivindicadas e não havia sido observado. Destacou que o título de propriedade com mais de 25 anos provava cabalmente que o recorrente era legítimo proprietário da terra.

Por fim, destacou que o entendimento da Corte no caso Raposa Serra do Sol deve servir de “apoio moral e persuasivo” a todos os casos de demarcação de terras indígenas, a despeito de sua produção de efeitos inter partes. Seu voto foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello e Carmem Lucia.

Um de seus argumentos foi a aplicação do Enunciado de Súmula 650 que trata dos aldeamentos extintos segundo o qual “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamento extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Explicou que este é um critério que leva em conta o conceito objetivo de posse, deixando claro que a posse tradicional (agora respeitando o marco temporal de 05 de outubro de 1988) difere de posse imemorial (RE 219.983, julgado em 9.12.1998).

Interessante analisar o pano de fundo dos debates travados entre os julgadores. Ao final de seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski destacou que o §4º do artigo 231 é um dos dispositivos mais fortes da Constituição Federal e demonstrou os motivos:

“Nós sabemos que o que está havendo, hoje, em todo o Brasil, lamentavelmente, é um novo genocídio de indígenas em várias partes do país, em que os fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que eram dos índios, e posse dos índios, os expulsam manu militari, e depois os expedientes jurídicos, os mais diversos – depois de esgotados os expedientes, evidentemente, ilegais e até criminosos- acabam postergando o cumprimento desse importante dispositivo constitucional”

Diferentemente, o Ministro Gilmar Mendes expressou outras preocupações relacionadas ao caso:

“No caso de Mato Grosso do Sul é exatamente essa conflagração que existe, em função de se estar fazendo demarcação de áreas altamente produtivas. Então, por isso que a questão se coloca.”

Debate registrado no Acórdão, transitado em julgado: (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880)

Na verdade não se tem aqui um mero confronto de posições mas o cerne da tensão histórica entre os povos indígenas e aqueles não-índios que vieram a ocupar seus territórios na “colonização” do centro-oeste desde o começo do século XX. Essa ocupação constituiu um grande obstáculo à permanência destes povos em suas terras ancestrais e seus efeitos se estendem aos dias de hoje.

O ponto principal consiste em conceituar “terra que tradicionalmente ocupam” presente no artigo 231 da Constituição. Para tanto, deve-se analisar o laudo antropológico da Funai, dado que à União cabe demarcar as terras tradicionais, e, por conseguinte, dizer o que é e o que não é terra tradicionalmente ocupada.

Nesse documento, alguns dados fáticos em relação à terra podem ser encontrados:  a terra se encontra em área ocupada pelos ancestrais dos Guarani-Kaiowá antes do período colonial; os índios demonstram vontade de retornar e demonstram haver um vínculo especial com a terra; a ocupação de caráter permanente da terra deixou de existir a partir da década de 1940; os motivos pelos quais a ocupação permanente desapareceu na década de 1940 foram que:

a) as terras voltaram ao domínio da União;
b) as terras foram tituladas e, posteriormente;
c) as terras foram vendidas ou distribuídas pelo Estado do Mato Grosso do Sul aos colonos;
d) os índios foram paulatinamente expulsos pelos fazendeiros;
e) muitos índios tornaram-se peões e portanto permaneceram na terra onde sempre viveram sob esta nova condição de mão-de-obra barata.

O laudo também concluiu que os Kaiowá deixaram a terra devido às pressões que receberam dos colonizadores que conseguiram os primeiros títulos na região; a ocupação da terra pelas fazendas desarticulou a vida comunitária dos Kaiowá;  muito permaneceram e trabalharam como peões; na década de 1980 as últimas famílias deixaram o local.

Como resultado, o Relatório Circunstanciado da FUNAI – que fora posteriormente, utilizado como base da Portaria declaratória do Ministro da Justiça – reconheceu os direitos de posse e de usufruto exclusivo dos Kaiowá à Terra Indígena de Guyraroká, a partir da conclusão de que a terra em questão é terra de ocupação tradicional, mesmo com o afastamento dos Kaiowá, por motivos alheios a sua vontade. Esse mesmo relatório não foi sequer analisado dado a aplicação da tese do marco temporal.

Gravíssima situação ocorre atualmente. Desde a decisão do caso Guyraroká, muitas outras sentenças já foram emitidas em prejuízo dos povos originários, derrubando processos e atos demarcatórios em curso ou finalizados Brasil a fora, causando uma crise profunda, e sob efeito dominó, retirando a proteção constitucional pelo seu próprio guardião, Supremo Tribunal Federal, ofendendo a garantia dos direitos dos povos indígenas, os deixando em extrema vulnerabilidade e às demarcações de suas terras. Para mencionar alguns, os Terena tiveram seu direito à terra atropelados pela decisão no Caso Limão Verde, também no final de 2014. O mesmo ocorreu com os Canela Apãnjekra, no Caso da Terra Indígena Porquinhos, todos julgados pelo STF. No começo de outubro de 2016, a tese do marco temporal atingiu novamente os Guarani Kaiowá que vivem na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, MS. O mesmo aconteceu com os Gamela por conta de uma decisão da Comarca Estadual de Matinha (MA).

Nos cabe, então, questionar: o que fazer quando o último mecanismo de proteção a direitos fundamentais do Estado sucumbe?

Voltamos ao parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição que expressamente dispõe:  os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos Princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República federativa do Brasil seja parte.

Em 1969, foi assinada em San José da Costa Rica, no âmbito da Conferência Especializada de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). Também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, hoje mais importante e efetivo instrumento internacional de proteção aos Direitos Humanos no continente americano. Estabelece um sistema de controle e supervisão das obrigações assumidas pelos Estados-parte por intermédio de um verdadeiro Processo Internacional dos Direitos Humanos. Este sistema funciona segundo um mecanismo bifásico, inspirado historicamente na Convenção Européia de Direitos Humanos quando de sua criação. Após a passagem pela Comissão Interamericana, respectivamente pela admissibilidade (art. 46); pela tentativa de solução amistosa (art. 48); e pelo “primeiro informe” (art. 50), o caso, se não resolvido, é encaminhado ao órgão jurisdicional competente e intérprete último da Convenção: a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O Estado Brasileiro  vinculou-se às obrigações previstas na Convenção, reconhecendo de pleno direito, em 1998, a competência jurisdicional contenciosa obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos para todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção, em conformidade ao artigo 62 da mesma. É dizer, a partir de 1998 o Brasil comprometeu-se internacionalmente a respeitar e cumprir as decisões oriundas da atividade jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E com a edição interna do Decreto 4.463 de 8 de novembro de 2002  o Brasil promulgou o reconhecimento da citada Corte, em território nacional. Ressalte-se que para o Direito Internacional é irrelevante a edição deste Decreto, pois se considera que a obrigação, no âmbito regional, já havia sido formalmente assumida.

Como conseqüências desse reconhecimento, o Estado Brasileiro está vinculado às suas decisões, podendo ser responsabilizado por eventual violação de Direitos Humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos vem aperfeiçoando sua jurisprudência na matéria de direitos dos povos indígenas. Uma demanda trazida à sua jurisdição sobre a temática foi o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua (2001) no qual a Nicarágua foi condenada pela não demarcação das terras comunais pertencentes à Comunidade Awas Tingni. A partir desse julgado, a Corte entendeu que o artigo 21 da Convenção Americana protege o direito à propriedade em um sentido que compreende, também, os direitos dos membros das comunidades indígenas à propriedade comunal (§ 148). A Corte buscou destacar a tradição existente entre os povos indígenas no que toca a forma comunitária da propriedade coletiva, no sentido de que esta não pertence a um indivíduo exclusivamente, mas a toda a comunidade. A estreita relação que estabelecem com a terra, como base de sua cultura, sua vida espiritual, sua integridade e sobrevivência deve ser reconhecida e compreendida. Assim, a relação com a terra para os povos indígenas, não é meramente uma questão de posse, mas uma conjunção dos elementos material e espiritual do qual devem gozar plenamente inclusive para que seu legado cultural seja transmitido a gerações futuras (§ 149). A Corte ainda estabeleceu que o direito costumeiro destes povos deve ser considerado especialmente no que toca à desnecessidade de um título para que sua propriedade seja reconhecida (§151).

No caso Sawhoyamaxa vs. Paraguai (2006), a violação do direito à propriedade coletiva se deu pela inefetividade do processo de solicitação do território, que não gerou resultado satisfatório. Além da impossibilidade deste povo de acessar seu território coletivo, a situação ocasionou um estado de alta vulnerabilidade alimentar, médica e sanitária que colocaram em risco sua vida e integridade.

Em que pese a semelhança com o caso Yayke Axa – no qual o Paraguai foi condenado por prática ilícita semelhante – neste caso a Corte procedeu com análise diferente, buscando  identificar se a posse por parte dos indígenas era um requisito para o reconhecimento oficial da propriedade. No caso de não ser, analisou se o direito à devolução tem um limite temporal. Por fim, sugeriu medidas que o Estado deveria adotar para efetivar o direito de propriedade indígena (§126) e fixou entendimento de que a posse produz efeitos equivalentes ao título de propriedade outorgado pelo Estado e dá o direito de exigi-los, como no caso Maygna (Sumo). Ainda que, nos casos de posse  perdida por motivos alheios à vontade dos índios estes continuam os proprietários de suas terras, salvo se as tenham vendido a terceiros de boa-fé (Comunidade Moiwana). E uma outra situação se daria nos casos em que os membros tenham perdido a posse involuntariamente e estas tenham sido vendidas a terceiros inocentes. Neste caso os indígenas teriam o direito de recuperá-las ou de obter terras de igual extensão e qualidade (Yakye Axa). O presente caso, entendeu a Corte, se enquadrou no último modelo. Consequentemente, a posse não é pré-requisito que condiciona a existência do direito à recuperação das terras (§128).

Sobre a questão temporal, que muito nos interessa, a Corte buscou responder se o direito de recuperação das terras tradicionais permanece indefinido no tempo ou se há um limite. E definiu que enquanto a base espiritual e material da identidade dos povos indígenas se mantiver em relação às suas terras tradicionais, o direito a reivindicá-las permanecerá vigente, caso contrário se extinguirá. Nesse ponto, surge um questionamento: como identificar esta relação entre os povos e suas terras? Isso vai depender do povo indígena envolvido em cada caso concreto e poderá incluir uma análise do seu uso ou presença tradicional, seja através de laços espirituais ou cerimoniais; assentamentos ou cultivos esporádicos; caça, pesca ou coleta permanente ou nômade; uso dos recursos naturais ligados a seus costumes ou qualquer outro elemento característico de sua cultura (§131). Por fim, levou em consideração se a relação com a terra é faticamente possível, tendo em vista que os índios podem encontrar-se impedidos de realizar a retomada do território por causas alheias à sua vontade e que representem um obstáculo real para manter dita relação. Assim, o direito à recuperação da terra persiste até que os impedimentos (violência, ameaça, etc.) desapareçam (§132). Neste sentido, decidiu que o direito da Comunidade Sawhoyamaxa de recuperar suas terras não caducou no caso concreto.

Como se pode observar, visões bastante destoantes sobre a dimensão, limites e parêmetros para definir e aplicar o direito de posse e usufruto exclusivo de terras tradicionais brasileiras.
É certo que o Supremo Tribunal Federal deve travar um diálogo interjurisdicional com a Corte Interamericana e resolver conflitos existentes entre as diferentes interpretações, já que o respeito ao direito internacional pelos Estados é uma obrigação internacional e essa jurisprudência pertence a um tribunal internacional ao qual o Brasil está voluntariamente vinculado, como explicado anteriormente, e que está apto a emitir decisões vinculantes contra o Estado brasileiro. Infelizmente, em nenhum de seus julgados o STF buscou referir-se à extensa jurisprudência da Corte IDH.

Nesse sentido, se adotados os parâmetros interpretativos da Corte Interamericana, os acórdãos brasileiros devem ser reformulados.

A Corte IDH desenvolve com profundidade o conceito de propriedade comunal, sendo aquela que respeita a tradição coletivista da singular cosmovisão indígena em lidar com a terra. Delimita com mais cautela os elementos ou critérios materiais e imateriais da relação com a terra, tais quais o cultural, espiritual, de sobrevivência, integridade e de relação intertemporal entre passado (gerações ancestrais) e futuro (gerações futuras). De maior relevância e em claro confronto com a tese do marco temporal da ocupação.

Desta forma, a perda involuntária da posse e a consequente alienação da terra a terceiros de boa-fé não faz desaparecer o direito à terra ancestral. Nesses casos, a comunidade terá o direito a recuperar suas terras, ou – se impossível sua recuperação – de obter terras iguais em extensão e qualidade. Ainda, se desejarem, pode a comunidade obter, alternativamente, a indenização proporcional em dinheiro. O que se aplica perfeitamente ao caso concreto dos Guarani-Kaiowá de Guyraroká. Estes foram expulsos de suas terras que foram ocupadas por fazendeiros. Ainda que, possivelmente, de boa-fé, conforme demonstrou o laudo da Funai, os índios sofreram coerção e violência, e foram, ao final, afastados da terra contrariamente à sua vontade. Logo, segundo os critérios da Corte Interamericana o direito à terra permanece.

Em segundo lugar, a Corte sugere um método destoante do marco temporal para a definição do limite temporal ao direito de recuperação da terra. Para tanto, deve-se, primeiramente, analisar se as bases espirituais e materiais se mantém em relação à terra. Para aferir isto, basta analisar a relação de cada povo com a terra, observando se a tradição é respeitada no estabelecimento do vínculo. Se, por qualquer motivo, o povo estiver impedido de relacionar-se com a terra, como ocorre no caso da Terra de Guyraroká, o direito de recuperação persiste mesmo com o impedimento, ou seja, exclui-se a ideia de marco temporal, mantendo-se somente o critério da tradicionalidade da ocupação.

Por fim, um último parâmetro interpretativo, de que a perda da propriedade pode afetar irremediavelmente a identidade cultural dos povos indígenas. Com isso, conclui-se que, não se pode manter os critérios sugeridos pelo Ministro Carlos Ayres Brito e revividos pelo Ministro Gilmar Mendes, pois em inteiro desacordo com a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos pela Corte Interamericana. Mais especificamente, o arbitrário “marco temporal de ocupação” (05 de outubro de 1988) estabelecido pelo STF seria tido como inconvencional.

Assim sendo, os guarani-kaiowá ainda têm direito às suas terras coletivas, além do direito a reivindicá-las. Na inexistência de um diálogo interjurisdicional, realizado pela a atividade hermenêutica do STF, só caberá ao Brasil ser responsabilizado internacionalmente por meio de uma sentença internacional da Corte IDH.

Assim, os direitos humanos passam por um duplo crivo e gozam de uma dupla garantia: em primeiro lugar o controle de constitucionalidade pelo STF, em segundo, o controle de convencionalidade pela Corte IDH. Caso o primeiro falhe, como observamos no caso concreto, haverá ainda um segundo controle.

Vale reiterar o ainda não mencionado artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que afirma que o Brasil pugnará pela criação de um Corte Internacional de Direitos Humanos, logo, infere-se, pugnará também por acatar a sua interpretação destes direitos.

Concluindo, resta evidente que a jurisdição internacional não permite que se limite o direito originário à terra tradicionalmente ocupada por um marco temporal irrefletido, que não guarda qualquer vínculo racional com a ideia de tradicionalidade. Por isso, as decisões do Supremo Tribunal afrontam de forma patente a Convenção Americana, tal como entendida por seu intérprete legítimo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Os povos originários constituem um dos grupos sociais mais frágeis e vulneráveis em nosso continente. É um grupo sub-representado politicamente e seus direitos, em que pese estabelecidos constitucionalmente, são de baixíssima efetividade, especialmente quando a mais alta das instituições brasileiras se põe a falhar no exercício de sua função. Daí a importância de um órgão jurisdicional internacional poder exercer um controle judicial verdadeiramente contra majoritário, ou seja, de forma a poder efetivamente agir na falha do Estado quando seus próprios órgãos falharem na proteção dos direitos fundamentais.

Referências Bibliográficas

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). 2009. Democracia y Derechos Humanos en Venezuela. Doc.OEA/Ser,L/V/II, Doc. 54, 30dic.
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* Professora de Direito, Indigenista e Educadora