
Sete anos após a morte de Villas Bôas, Marina ainda hoje toma conta do marido: com a ajuda dos filhos, é ela quem cataloga as 2,5 mil peças de seu acervo, boa parte guardada em estantes e prateleiras da casa da família. A catalogação - difícil identificação de peças presenteadas por kamaiurás, karajás, kuikuros, entre dezenas de etnias com as quais Villas Bôas manteve contato - é preparação para o futuro memorial ao sertanista, que será construído no Parque Orlando Villas Bôas, na antiga usina de compostagem da Vila Leopoldina. "Catalogamos mil peças, num trabalho de formiguinha.Ainda há muito o que fazer", conta a enfermeira de 72 anos, natural de Borborema, no interior. As obras do Memorial Villas Bôas, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, começam no primeiro semestre de 2010.
Não há pesquisador que conheça melhor o trabalho de Villas Bôas do que sua família. "O trabalho de Orlando era tão intenso que todos, não só eu, mas nossos filhos, Noel e Orlando Filho, mergulhamos juntos. Todos entramos na mata." Por 12 anos, entre 1963 e 1975, Marina deu sofrido expediente no Parque Indígena do Xingu - reserva que reúne 14 tribos em Mato Grosso, criada em 1961, maior realização dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas. Na selva, Marina viveu momentos impensáveis em tempos de estudante, na escola do Hospital Matarazzo. "A veia aventureira estava escondida."
Logo nos primeiros meses de Xingu, viveu a tensa situação de realizar primeiro contato com uma tribo desconhecida. "É o momento mais difícil. São meses acampados na mata, até que os índios, e só os índios, decidam fazer contato. Ninguém sabe a reação." O contato com a tribo txikão, naquele 1964, seria feito para convencê-los, simplesmente, a abandonar o local onde viviam. Estavam no caminho de futura rodovia, tinham de sair dali.
Após gritos de anunciação, lembra Marina, os índios irromperam da mata até a clareira onde a equipe estava - a curiosidade, intensa, foi representada em mãos, mãos, e mãos, de 50 índios, querendo tocar a pele de Marina, primeira mulher branca que viram na vida. "Nunca fui tão apalpada. Éramos quatro de nós, e 50 índios curiosos, a me tocar. Voltei ao acampamento e, aliviada, recebi um abraço apertado." Era Orlando, a retribuir, do modo mais terno possível, a proteção que a esposa lhe dava.
DE CONSULTÓRIO
Antes de chegar à reserva, Marina havia visto índios - um índio, na verdade - uma única vez na vida. "Quando atendi um indiozinho que fugiu da Ilha do Bananal, não podia imaginar que trabalharia com eles o resto da vida." Foi o próprio sertanista quem convidou a enfermeira - que trabalhava no consultório de Murilo Vilela, amigo de Villas Bôas - para integrar a equipe no Xingu. "Ele se tratava da malária, com vitaminas. Viveria com isso a vida toda. E eu, também."
Nos 33 anos em que foram casados, Marina ouviu do marido máximas como "precisamos salvar essa outra humanidade", "nunca vi índios discutindo" e a famosa definição de que, entre as tribos, "o velho é o dono da história, o índio é o dono da aldeia, a criança é dona do mundo" - incorporadas ao repertório da família. "O memorial servirá para cultivar a paixão pelas raízes", diz o filho Noel, que hoje dá palestras sobre a obra do pai.
Se Villas Bôas teve reconhecimento mundial - foi indicado duas vezes ao Prêmio Nobel -, o bairro da Lapa, para onde a família se mudou em 1989, também homenageou o ilustre morador. Após sua morte, em dezembro de 2002, foram criados no bairro um memorial e um busto, e batizados um anfiteatro (no Colégio Santo Ivo) e uma escola, todos em homenagem a Villas Bôas. "No Dia do Índio, a casa amanhecia cheia de cartazes no portão, feitos por crianças do bairro", conta Marina. A pedido da associação de moradores, foi criado projeto de lei para nomear o Complexo Anhanguera em homenagem aos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas - a proposta é que seja batizado Complexo Irmãos Villas Bôas, e que cada um dos três viadutos leve o nome de um deles.
Ao lado do sertanista por uma vida, Marina também recebeu homenagens - no Conselho Nacional de Enfermagem foi criado o Prêmio Marina Villas Bôas, pelos serviços no Xingu. Enquanto Marina esteve lá, quatro anos correram sem registros de óbitos infantis. Há ainda outra homenagem: no mês passado, soube que receberá o título de "Cidadã de Borborema". "É gostoso saber que nossa terra nos acompanha também."
No galpão nos fundos da casa,onde é realizada a catalogação, há capítulos importantes da história do País. "O que houve no interior entre 1943 (Marcha para o Oeste, tentativa do governo Vargas de ocupar o interior) e 1960 (inauguração de Brasília), datas mais lembradas? Pois está tudo aqui", diz Marina, apontando imagens e documentos. Contrastando com 40 fotos de índios nas paredes, estão pendurados oito quadros dos Villas Bôas. "Era o canto de trabalho de Orlando, o preferido dele." Ao centro, há uma foto da família toda - pai e filhos se abraçam, observados atentamente pela mãe, Marina, enfermeira dedicada a proteger, até hoje, a memória de Villas Bôas.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091004/not_imp445502,0.php
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Um comentário:
Trabalhei num restaurante em Mairiporã, onde o Orlando sua mulher e o garotinho da foto, seu filho, frequentavam, isso no início da década de 80. Eles chegavam numa kombi azul que tinha o estepe colocado na frente do veículo. Servi eles muitas vezes e de vez em quando, Orlando me pedia um pedaço de papel toalha, pra limpar as grossas lentes de seu par de óculos.
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