Nossa História não começa em 1988
* Maria Rachel Coelho
O
processo de demarcação, regulamentado pelo Decreto nº 1775/96, é o meio
administrativo para identificar e sinalizar os limites do território
tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas. Nos termos do Decreto, a
regularização fundiária de terras indígenas tradicionalmente ocupadas
compreende as seguintes etapas, de competência do Poder Executivo:
i) Estudos de identificação e delimitação, a cargo da Funai;
ii) Contraditório administrativo;
iii) Declaração dos limites, a cargo do Ministro da Justiça;
iv) Demarcação física, a cargo da Funai;
v) Levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos ocupantes não-índios, a cargo da Funai, realizado em conjunto com o cadastro dos ocupantes não-índios, a cargo do Incra;
vi) Homologação da demarcação, a cargo da Presidência da República;
vii) Retirada de ocupantes não-índios, com pagamento de benfeitorias consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra;
viii) Registro das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, a cargo da Funai; e
ix) Interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados, a cargo da Funai.
É
certo que já se debateu a possibilidade
de controle judicial desse ato administrativo discricionário. E por vezes,
os pedidos são da própria FUNAI.
Também
o Judiciário não pode eximir-se de julgar qualquer demanda em respeito ao artigo 5º , inciso XXXV, da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
No
entanto, para se reconhecer a possibilidade jurídica do pedido, é preciso que
haja negativa expressa do ordenamento jurídico quanto ao tema versado, ou seja,
que o Executivo viole a legalidade. Desta forma, ao Judiciário cabe restaurar a
ordem jurídica mas nunca adentrando o mérito, se uma T.I deve ser demarcada ou
não, sob pena de invasão a competência do Executivo.
Aliás,
no julgamento da PET 3.388 (T.I. Raposa Serra do Sol), o STF identificou o
caráter de direito fundamental que reveste a demarcação das terras indígenas,
tendo em vista ser a “concretização constitucional do valor da inclusão
comunitária pela via da identidade étnica”, ancorada na materialização do
princípio da igualdade, conforme se observa da ementa do acórdão:
“Os arts. 231 e 232 da Constituição
Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma
quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de
igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da
integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens
historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações
afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes
assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem
preservar sua identidade somática, linguística e cultural.”
“DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os
direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram
constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o
ato de demarcação se torna de natureza declaratória, e não propriamente
constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa
preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”,
a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a
preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em
escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios.
Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos”
(parágrafo 6º do artigo 231 da CF).” (grifo nosso)
O
STF entendeu, ainda, nesse julgamento, que a demarcação de terras
indígenas tem exclusivo caráter de atribuição do Poder Executivo: “Somente à União, por atos situados na
esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e
concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto
efetivá-lo materialmente”.
Realizamos
agora, um estudo dos casos: Raposa Serra do Sol (PET. nº 3388/RR, 2009) e
Guyrároka, ( RMS nº 29.087/DF, 2014), destacando o critério do “marco temporal da ocupação” a partir
desses julgados.
Cabe,
inicialmente, um histórico constitucional, em tempos de Constitucionalização do
Direito.
A
Constituição de 1934 foi a primeira a dar tratamento constitucional ao direito
dos povos indígenas à terra (nomeados, à época, silvícolas), determinando a
propriedade da União e conferindo-lhe natureza jurídica de direito natural, de
forma adequada, por ser um direito preexistente ao próprio reconhecimento
constitucional, reforçando sua natureza originária.
As
Constituições subseqüentes não apresentaram mudanças significativas, repetindo
o dispositivo constitucional de 1934.
Com
a promulgação da Constituição de 1988, reafirmou-se e valorizou-se o
dispositivo especificamente por meio do artigo 231 que dispõe que são direitos originários aqueles exercidos
pelos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar os bens, e ainda que essas terras são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis,
complementando seu § 1º, “terras por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
O
texto constitucional é bastante claro ao definir que são terras indígenas
aquelas que os indígenas tradicionalmente ocupam. É taxativo ao afirmar que
sobre elas os indígenas detêm direitos originários, ou seja, anteriores à
própria Constituição. Por isso o texto constitucional atribui à União, por meio
de seu braço executivo, a competência de delimitar essas terras, seguindo um
longo processo administrativo demarcatório pelo qual caberia dizer se uma terra
é, ou não, terra indígena. Ocorre que em seus atos das disposições
constitucionais transitórios, estabeleceu-se no artigo 67 que a União
concluiria a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
promulgação da Constituição. Esse prazo não só foi ignorado para muitas terras
originalmente ocupadas, como o Supremo Tribunal Federal iniciou uma interpretação
restritiva do artigo 231 e desde 2014, vem violando a proteção
normativo-constitucional ao direito indígena à terra, senão, vejamos:
O
caso Raposa Serra do Sol foi um leading case em matéria de demarcação de terras
indígenas levado ao Supremo. O objeto da demanda, consistia na tentativa de
impugnar a Portaria nº 534/2005, do Ministro da Justiça, homologada pelo
Presidente Lula, em 15 de abril de 2005, a qual promoveu a demarcação da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol no estado de Roraima. O caso se desenvolveu num
contexto em que, após 2005, uma enxurrada de ações surgiram visando impugnar o
ato demarcatório, proveniente especialmente de arrozeiros e do Governo do
Estado de Roraima. O caso teve grande repercussão principalmente pelo interesse
econômico na área. (O Brasil detém a maior reserva de nióbio do mundo com 98,43%
e na região se encontra uma significante reserva seguida de Minas Gerais, Araxá
e Tapira e Goiás, Catalão e Ouvidor).
O
Supremo Tribunal Federal decidiu, a partir do voto de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, pelo
reconhecimento da legalidade do processo administrativo da demarcação. Tampouco
restringiu a demarcação da terra ao método de ilhas, ao contrário, garantiu a
contiguidade na demarcação.
Por
outro lado, a decisão estabeleceu o chamado “Conteúdo Positivo do Ato de
Demarcação das Terras Indígenas”, pelo qual inovou na ordem jurídica ao criar
parâmetros para a demarcação da terra naquele caso concreto, além de outras nulidades como a imposição
pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito de dezenove condicionantes(19)
condicionantes ofendendo o Princípio da Congruência, segundo o qual, o juiz
está adstrito ao pedido, e o pedido ali era o reconhecimento da demarcação em
área contínua.
Já
o Ministro Ayres Britto definiu quatro critérios para o reconhecimento de
determinada terra como terra indígena. Daremos destaque para dois deles: o marco da tradicionalidade da ocupação,
e o marco temporal da ocupação.
De
acordo com o primeiro, para que uma terra indígena possa ser considerada
tradicional, as comunidades indígenas devem demonstrar o caráter de
perdurabilidade de sua relação com a terra, em sentido anímico e psíquico de
continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições,
costumes e subsistência. O critério do marco tradicional da ocupação estabelece
que os indígenas devem preencher, basicamente dois elementos: um imaterial (espiritual, ancestral,
psicológico) e outro material (da
relação direta com a terra, e.g. pesca, caça, etc.). Esse critério está em
plena consonância com a interpretação gramatical do artigo 231 da Constituição
da República que estabelece em seu parágrafo 1º que, permitam-me, repetir:
“Art.
231 - São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, (...):
§
1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições (grifos meus). ”
O
segundo critério cria o marco temporal
da ocupação que estabelece que as terras indígenas serão aquelas nas quais
houve efetiva ocupação, pelas populações indígenas, na data da promulgação da
Constituição (05 de outubro de 1988). Este parâmetro chama a atenção, em
primeiro lugar, por restringir o direito
à terra para aquém do trazido, gramaticalmente, no próprio texto
constitucional.
A
Constituição diz que são terras indígenas aquelas habitadas pelos índios em
caráter permanente, mas não exige que eles a estivessem ocupando,
necessariamente, na data de sua promulgação. Justamente pelos critérios
trazidos pelo marco da tradicionalidade, além da possibilidade do chamado esbulho renitente, qual seja: as
recorrentes situações em que os indígenas foram expulsos de suas terras pelos
não índios, e a elas foram impedidos de regressar, ainda que com a terra
guardassem as condições necessárias – materiais e imateriais – para a
configuração da ocupação tradicional.
Os
outros dois critérios foram: o marco da concreta abrangência fundiária e da
finalidade prática da ocupação tradicional, que descreve a utilidade prática a
que deve servir a terra tradicionalmente ocupada, ressaltando o critério da
ancestralidade e o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado
“princípio da proporcionalidade”, quer dizer que a aplicação do princípio da
proporcionalidade em matéria indígena, ganha um conteúdo extensivo.
Note-se
que se trata das terras ocupadas naquela data, nas palavras do Relator: “não aquelas
que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem
continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. ”
A
decisão apresenta um vício grave em restringir deliberadamente o direito
originário à terra por meio de um marco temporal que não guarda qualquer vínculo racional com nosso
sistema constitucional, trazendo também
o vício da anti-historicidade, ignorando o passado indigenista brasileiro e o
caráter originário de seus direitos, assim como o histórico compartilhado das
graves violações dos direitos humanos desses povos por parte de particulares e
do próprio Estado.
Por fim, essa decisão produziu efeito restrito às
partes processuais daquele caso concreto. Todavia, o caso foi apenas um impulso inicial da tese jurídica do marco
temporal da ocupação, como veremos adiante.
Após
cinco anos, foi interposto no Supremo Tribunal Federal o Recurso Ordinário
29.087 contra um acórdão do Superior Tribunal de Justiça que denegou a Ordem de
Segurança pretendida por um agricultor de Mato Grosso do Sul o qual pleiteava a
anulação da Portaria 3.219 de 2009 emitida pelo Ministro da Justiça, pela qual
foi declarada a posse permanente da Terra
Indígena Guyraroká aos Guarani-Kaiowá que nela tradicionalmente habitavam,
terra essa na qual se situava imóvel rural supostamente titularizado pelo
recorrente.
Ao
recorrer ao STF, o recorrente alegou que a portaria, apontada como ato coator,
teria violado seu direito líquido e certo, pois teria declarado como terra
indígena gleba de sua propriedade e sobre a qual exercia com exclusividade a
posse, inexistindo índios no local, ao menos desde o final da década de 1940.
O Ministro Ricardo Lewandowski, relator
do processo, de forma brilhante, afirmou que para discutir questão de posse de
terras submetidas a processo demarcatório seria necessária dilação probatória,
o que impediria a ação de ser decidida em sede de Mandado de Segurança.
Ademais, alegou o relator a inexistência de efeito vinculante erga omnes do
caso Raposa Serra do Sol, resultando, portanto, na impossibilidade de extensão
dos critérios daquele caso para a presente demanda.
No
entanto, o Ministro Gilmar Mendes,
após pedido de vista, trouxe um voto divergente tornando-se o novo relator do
caso. Concluiu ele que os documentos (laudo da Funai) seriam suficientes para
determinar que a comunidade indígena dos Guarani-Kaiowá não habitava a área
declarada há mais de setenta anos (desde o final da década de 1940), assim
entendeu necessário conjugar as referidas ressalvas institucionais do
emblemático caso Raposa Serra do Sol, especialmente as pertinentes à
averiguação da posse tradicional indígena na região, sugerindo assim que o
preestabelecido marco temporal para
configurar a posse, qual seja, a data da promulgação da Constituição (05 de
outubro de 1988), seria suficiente ao reconhecimento dos direitos às terras
reivindicadas e não havia sido observado. Destacou que o título de propriedade
com mais de 25 anos provava cabalmente que o recorrente era legítimo proprietário
da terra.
Por
fim, destacou que o entendimento da Corte no caso Raposa Serra do Sol deve
servir de “apoio moral e persuasivo”
a todos os casos de demarcação de terras indígenas, a despeito de sua produção de efeitos inter partes. Seu voto foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello e Carmem Lucia.
Um
de seus argumentos foi a aplicação do Enunciado de Súmula 650 que trata dos
aldeamentos extintos segundo o qual “os incisos I e XI do art. 20 da
Constituição Federal não alcançam terras de aldeamento extintos, ainda que
ocupadas por indígenas em passado remoto”. Explicou que este é um critério que
leva em conta o conceito objetivo de posse, deixando claro que a posse
tradicional (agora respeitando o marco temporal de 05 de outubro de 1988) difere
de posse imemorial (RE 219.983, julgado em 9.12.1998).
Interessante
analisar o pano de fundo dos debates travados entre os julgadores. Ao final de
seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski
destacou que o §4º do artigo 231 é um dos dispositivos mais fortes da
Constituição Federal e demonstrou os motivos:
“Nós sabemos que o que está havendo,
hoje, em todo o Brasil, lamentavelmente, é um novo genocídio de indígenas em
várias partes do país, em que os fazendeiros, criminosamente, ocupam terras que
eram dos índios, e posse dos índios, os expulsam manu militari, e depois os expedientes jurídicos, os mais diversos
– depois de esgotados os expedientes, evidentemente, ilegais e até criminosos-
acabam postergando o cumprimento desse importante dispositivo constitucional”
Diferentemente,
o Ministro Gilmar Mendes expressou
outras preocupações relacionadas ao caso:
“No caso de Mato Grosso do Sul é
exatamente essa conflagração que existe, em função de se estar fazendo
demarcação de áreas altamente produtivas. Então, por isso que a questão se
coloca.”
Debate registrado no
Acórdão, transitado em julgado: (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880)
Na
verdade não se tem aqui um mero confronto de posições mas o cerne da tensão
histórica entre os povos indígenas e aqueles não-índios que vieram a ocupar
seus territórios na “colonização” do centro-oeste desde o começo do século XX.
Essa ocupação constituiu um grande obstáculo à permanência destes povos em suas
terras ancestrais e seus efeitos se estendem aos dias de hoje.
O
ponto principal consiste em conceituar “terra que tradicionalmente ocupam”
presente no artigo 231 da Constituição. Para tanto, deve-se analisar o laudo
antropológico da Funai, dado que à União cabe demarcar as terras tradicionais,
e, por conseguinte, dizer o que é e o que não é terra tradicionalmente ocupada.
Nesse
documento, alguns dados fáticos em relação à terra podem ser encontrados: a terra se encontra em área ocupada pelos
ancestrais dos Guarani-Kaiowá antes do período colonial; os índios demonstram
vontade de retornar e demonstram haver um vínculo especial com a terra; a
ocupação de caráter permanente da terra deixou de existir a partir da década de
1940; os motivos pelos quais a ocupação permanente desapareceu na década de
1940 foram que:
a) as terras voltaram ao
domínio da União;
b) as terras foram tituladas
e, posteriormente;
c) as terras foram vendidas
ou distribuídas pelo Estado do Mato Grosso do Sul aos colonos;
d) os índios foram
paulatinamente expulsos pelos fazendeiros;
e) muitos índios tornaram-se
peões e portanto permaneceram na terra onde sempre viveram sob esta nova
condição de mão-de-obra barata.
O
laudo também concluiu que os Kaiowá deixaram a terra devido às pressões que
receberam dos colonizadores que conseguiram os primeiros títulos na região; a
ocupação da terra pelas fazendas desarticulou a vida comunitária dos Kaiowá; muito permaneceram e trabalharam como peões;
na década de 1980 as últimas famílias deixaram o local.
Como
resultado, o Relatório Circunstanciado da FUNAI – que fora posteriormente,
utilizado como base da Portaria declaratória do Ministro da Justiça –
reconheceu os direitos de posse e de usufruto exclusivo dos Kaiowá à Terra
Indígena de Guyraroká, a partir da conclusão de que a terra em questão é terra
de ocupação tradicional, mesmo com o
afastamento dos Kaiowá, por motivos alheios a sua vontade. Esse mesmo
relatório não foi sequer analisado dado a aplicação da tese do marco temporal.
Gravíssima
situação ocorre atualmente. Desde a decisão do caso Guyraroká, muitas outras
sentenças já foram emitidas em prejuízo dos povos originários, derrubando
processos e atos demarcatórios em curso ou finalizados Brasil a fora, causando
uma crise profunda, e sob efeito dominó, retirando a proteção constitucional
pelo seu próprio guardião, Supremo Tribunal Federal, ofendendo a garantia dos
direitos dos povos indígenas, os deixando em extrema vulnerabilidade e às
demarcações de suas terras. Para mencionar alguns, os Terena tiveram seu
direito à terra atropelados pela decisão no Caso Limão Verde, também no final
de 2014. O mesmo ocorreu com os Canela Apãnjekra, no Caso da Terra Indígena
Porquinhos, todos julgados pelo STF. No começo de outubro de 2016, a tese do marco
temporal atingiu novamente os Guarani Kaiowá que vivem na Terra Indígena
Panambi-Lagoa Rica, MS. O mesmo aconteceu com os Gamela por conta de uma
decisão da Comarca Estadual de Matinha (MA).
Nos cabe, então, questionar: o que
fazer quando o último mecanismo de proteção a direitos fundamentais do Estado
sucumbe?
Voltamos ao parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição que expressamente dispõe: os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos Princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República federativa do Brasil seja parte.
Voltamos ao parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição que expressamente dispõe: os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos Princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República federativa do Brasil seja parte.
Em
1969, foi assinada em San
José da Costa Rica, no âmbito da Conferência Especializada de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (CADH). Também conhecida como Pacto de San
José da Costa Rica, hoje mais importante e efetivo instrumento internacional de
proteção aos Direitos Humanos no continente americano. Estabelece um sistema de
controle e supervisão das obrigações assumidas pelos Estados-parte por
intermédio de um verdadeiro Processo Internacional dos Direitos Humanos. Este
sistema funciona segundo um mecanismo bifásico, inspirado historicamente na
Convenção Européia de Direitos Humanos quando de sua criação. Após a passagem
pela Comissão Interamericana, respectivamente pela admissibilidade (art. 46);
pela tentativa de solução amistosa (art. 48); e pelo “primeiro informe” (art. 50),
o caso, se não resolvido, é encaminhado ao órgão jurisdicional competente e intérprete
último da Convenção: a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O
Estado Brasileiro vinculou-se às
obrigações previstas na Convenção, reconhecendo de pleno direito, em 1998, a competência
jurisdicional contenciosa obrigatória da Corte Interamericana de Direitos
Humanos para todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção,
em conformidade ao artigo 62 da mesma. É dizer, a partir de 1998 o Brasil comprometeu-se
internacionalmente a respeitar e cumprir as decisões oriundas da atividade
jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E com a edição
interna do Decreto 4.463 de 8 de novembro de 2002 o Brasil promulgou o reconhecimento da citada
Corte, em território nacional. Ressalte-se que para o Direito Internacional é
irrelevante a edição deste Decreto, pois se considera que a obrigação, no
âmbito regional, já havia sido formalmente assumida.
Como
conseqüências desse reconhecimento, o Estado Brasileiro está vinculado às suas
decisões, podendo ser responsabilizado por eventual violação de Direitos
Humanos.
A
Corte Interamericana de Direitos Humanos vem aperfeiçoando sua jurisprudência
na matéria de direitos dos povos indígenas. Uma demanda trazida à sua
jurisdição sobre a temática foi o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua
(2001) no qual a Nicarágua foi condenada pela não demarcação das terras
comunais pertencentes à Comunidade Awas Tingni. A partir desse julgado, a Corte
entendeu que o artigo 21 da Convenção Americana protege o direito à propriedade
em um sentido que compreende, também, os direitos dos membros das comunidades
indígenas à propriedade comunal (§ 148). A Corte buscou destacar a tradição
existente entre os povos indígenas no que toca a forma comunitária da
propriedade coletiva, no sentido de que esta não pertence a um indivíduo
exclusivamente, mas a toda a comunidade. A estreita relação que estabelecem com
a terra, como base de sua cultura, sua vida espiritual, sua integridade e
sobrevivência deve ser reconhecida e compreendida. Assim, a relação com a terra
para os povos indígenas, não é meramente uma questão de posse, mas uma
conjunção dos elementos material e espiritual do qual devem gozar plenamente
inclusive para que seu legado cultural seja transmitido a gerações futuras (§
149). A Corte ainda estabeleceu que o direito costumeiro destes povos deve ser
considerado especialmente no que toca à desnecessidade de um título para que
sua propriedade seja reconhecida (§151).
No
caso Sawhoyamaxa vs. Paraguai (2006), a violação do direito à propriedade
coletiva se deu pela inefetividade do processo de solicitação do território,
que não gerou resultado satisfatório. Além da impossibilidade deste povo de
acessar seu território coletivo, a situação ocasionou um estado de alta
vulnerabilidade alimentar, médica e sanitária que colocaram em risco sua vida e
integridade.
Em
que pese a semelhança com o caso Yayke Axa – no qual o Paraguai foi condenado
por prática ilícita semelhante – neste caso a Corte procedeu com análise
diferente, buscando identificar se a
posse por parte dos indígenas era um requisito para o reconhecimento oficial da
propriedade. No caso de não ser, analisou se o direito à devolução tem um
limite temporal. Por fim, sugeriu medidas que o Estado deveria adotar para
efetivar o direito de propriedade indígena (§126) e fixou entendimento de que a
posse produz efeitos equivalentes ao título de propriedade outorgado pelo
Estado e dá o direito de exigi-los, como no caso Maygna (Sumo). Ainda que, nos
casos de posse perdida por motivos
alheios à vontade dos índios estes continuam os proprietários de suas terras,
salvo se as tenham vendido a terceiros de boa-fé (Comunidade Moiwana). E uma
outra situação se daria nos casos em que os membros tenham perdido a posse
involuntariamente e estas tenham sido vendidas a terceiros inocentes. Neste
caso os indígenas teriam o direito de recuperá-las ou de obter terras de igual
extensão e qualidade (Yakye Axa). O presente caso, entendeu a Corte, se
enquadrou no último modelo. Consequentemente, a posse não é pré-requisito que
condiciona a existência do direito à recuperação das terras (§128).
Sobre
a questão temporal, que muito nos interessa, a Corte buscou responder se o
direito de recuperação das terras tradicionais permanece indefinido no tempo ou
se há um limite. E definiu que enquanto a base espiritual e material da
identidade dos povos indígenas se mantiver em relação às suas terras
tradicionais, o direito a reivindicá-las permanecerá vigente, caso contrário se
extinguirá. Nesse ponto, surge um questionamento: como identificar esta relação
entre os povos e suas terras? Isso vai depender do povo indígena envolvido em
cada caso concreto e poderá incluir uma análise do seu uso ou presença
tradicional, seja através de laços espirituais ou cerimoniais; assentamentos ou
cultivos esporádicos; caça, pesca ou coleta permanente ou nômade; uso dos
recursos naturais ligados a seus costumes ou qualquer outro elemento
característico de sua cultura (§131). Por fim, levou em consideração se a
relação com a terra é faticamente possível, tendo em vista que os índios podem
encontrar-se impedidos de realizar a retomada do território por causas alheias
à sua vontade e que representem um obstáculo real para manter dita relação.
Assim, o direito à recuperação da terra persiste até que os impedimentos
(violência, ameaça, etc.) desapareçam (§132). Neste sentido, decidiu que o
direito da Comunidade Sawhoyamaxa de recuperar suas terras não caducou no caso
concreto.
Como
se pode observar, visões bastante destoantes sobre a dimensão, limites e
parêmetros para definir e aplicar o direito de posse e usufruto exclusivo de
terras tradicionais brasileiras.
É
certo que o Supremo Tribunal Federal deve travar um diálogo interjurisdicional
com a Corte Interamericana e resolver conflitos existentes entre as diferentes
interpretações, já que o respeito ao direito internacional pelos Estados é uma
obrigação internacional e essa
jurisprudência pertence a um tribunal internacional ao qual o Brasil está
voluntariamente vinculado, como explicado anteriormente, e que está apto a
emitir decisões vinculantes contra o Estado brasileiro. Infelizmente, em nenhum
de seus julgados o STF buscou referir-se à extensa jurisprudência da Corte IDH.
Nesse sentido, se adotados os
parâmetros interpretativos da Corte Interamericana, os acórdãos brasileiros
devem ser reformulados.
A
Corte IDH desenvolve com profundidade o conceito de propriedade comunal, sendo
aquela que respeita a tradição coletivista da singular cosmovisão indígena em
lidar com a terra. Delimita com mais cautela os elementos ou critérios
materiais e imateriais da relação com a terra, tais quais o cultural,
espiritual, de sobrevivência, integridade e de relação intertemporal entre
passado (gerações ancestrais) e futuro (gerações futuras). De maior relevância
e em claro confronto com a tese do marco temporal da ocupação.
Desta
forma, a perda involuntária da posse e a consequente alienação da terra a
terceiros de boa-fé não faz desaparecer o direito à terra ancestral. Nesses
casos, a comunidade terá o direito a recuperar suas terras, ou – se impossível
sua recuperação – de obter terras iguais em extensão e qualidade. Ainda, se
desejarem, pode a comunidade obter, alternativamente, a indenização
proporcional em dinheiro. O
que se aplica perfeitamente ao caso concreto dos Guarani-Kaiowá de Guyraroká.
Estes foram expulsos de suas terras que foram ocupadas por fazendeiros. Ainda
que, possivelmente, de boa-fé, conforme demonstrou o laudo da Funai, os índios
sofreram coerção e violência, e foram, ao final, afastados da terra
contrariamente à sua vontade. Logo, segundo os critérios da Corte
Interamericana o direito à terra permanece.
Em
segundo lugar, a Corte sugere um método destoante do marco temporal para a
definição do limite temporal ao direito de recuperação da terra. Para tanto,
deve-se, primeiramente, analisar se as bases espirituais e materiais se mantém
em relação à terra. Para aferir isto, basta analisar a relação de cada povo com
a terra, observando se a tradição é respeitada no estabelecimento do vínculo.
Se, por qualquer motivo, o povo estiver impedido de relacionar-se com a terra,
como ocorre no caso da Terra de Guyraroká, o direito de recuperação persiste
mesmo com o impedimento, ou seja, exclui-se a ideia de marco temporal,
mantendo-se somente o critério da tradicionalidade da ocupação.
Por
fim, um último parâmetro interpretativo, de que a perda da propriedade pode
afetar irremediavelmente a identidade cultural dos povos indígenas. Com isso,
conclui-se que, não se pode manter os critérios sugeridos pelo Ministro Carlos
Ayres Brito e revividos pelo Ministro Gilmar Mendes, pois em inteiro desacordo
com a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos pela Corte
Interamericana. Mais especificamente, o
arbitrário “marco temporal de ocupação” (05 de outubro de 1988) estabelecido
pelo STF seria tido como inconvencional.
Assim
sendo, os guarani-kaiowá ainda têm direito às suas terras coletivas, além do
direito a reivindicá-las. Na inexistência de um diálogo interjurisdicional,
realizado pela a atividade hermenêutica do STF, só caberá ao Brasil ser
responsabilizado internacionalmente por meio de uma sentença internacional da
Corte IDH.
Assim,
os direitos humanos passam por um duplo crivo e gozam de uma dupla garantia: em
primeiro lugar o controle de constitucionalidade pelo STF, em segundo, o
controle de convencionalidade pela Corte IDH. Caso o primeiro falhe, como
observamos no caso concreto, haverá ainda um segundo controle.
Vale
reiterar o ainda não mencionado artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias que afirma que o Brasil pugnará pela criação de um Corte
Internacional de Direitos Humanos, logo, infere-se, pugnará também por acatar a
sua interpretação destes direitos.
Concluindo,
resta evidente que a jurisdição internacional não permite que se limite o
direito originário à terra tradicionalmente ocupada por um marco temporal
irrefletido, que não guarda qualquer vínculo racional com a ideia de tradicionalidade.
Por isso, as decisões do Supremo Tribunal afrontam de forma patente a Convenção
Americana, tal como entendida por seu intérprete legítimo, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Os
povos originários constituem um dos grupos sociais mais frágeis e vulneráveis
em nosso continente. É um grupo sub-representado politicamente e seus direitos,
em que pese estabelecidos constitucionalmente, são de baixíssima efetividade,
especialmente quando a mais alta das instituições brasileiras se põe a falhar
no exercício de sua função. Daí a importância de um órgão jurisdicional
internacional poder exercer um controle judicial verdadeiramente contra
majoritário, ou seja, de forma a poder efetivamente agir na falha do Estado
quando seus próprios órgãos falharem na proteção dos direitos fundamentais.
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* Professora de Direito, Indigenista e Educadora
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