domingo, 11 de outubro de 2009

MEMORIAL VILLAS BÔAS SERÁ INAUGURADO NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2010 EM SÃO PAULO

Nos delírios frios da malária, o sertanista Orlando Villas Bôas entoava canções sertanejas. "Nunca vi alto sem baixo, nem morro sem boqueirão, mato tem bicho feio, tem boto e tem leão", cantava alto o sertanista, tiritando sob camadas de cobertores - dizia adorar os calafrios, a aliviar os 40°C do seu Xingu. Delirava, também, estrofes de poesia. "Tu tens 15 anos só, como és menina/ tenho 23, como envelheço/ tu és primavera que fascina/ sou inverno triste que escureço." A velar seu leito, por 33 anos, uma única enfermeira: Marina Villas Bôas, menina que fascinou o sertanista, com quem se casou em 1969. "Ele se embrenhava na mata só de bermuda e chinelo, os mosquitos faziam a festa", ela conta, na sala de casa, na Lapa, zona oeste da capital. Nos 61 anos de defesa da causa indígena, Orlando sofreu 253 acessos de malária, contados em exames de laboratório. Fato que leva a enfermeira, eterna protetora, a olhar para o alto, pensativa, e balançar a cabeça. "Alguém, realmente, tinha de cuidar do homem."
Sete anos após a morte de Villas Bôas, Marina ainda hoje toma conta do marido: com a ajuda dos filhos, é ela quem cataloga as 2,5 mil peças de seu acervo, boa parte guardada em estantes e prateleiras da casa da família. A catalogação - difícil identificação de peças presenteadas por kamaiurás, karajás, kuikuros, entre dezenas de etnias com as quais Villas Bôas manteve contato - é preparação para o futuro memorial ao sertanista, que será construído no Parque Orlando Villas Bôas, na antiga usina de compostagem da Vila Leopoldina. "Catalogamos mil peças, num trabalho de formiguinha.Ainda há muito o que fazer", conta a enfermeira de 72 anos, natural de Borborema, no interior. As obras do Memorial Villas Bôas, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, começam no primeiro semestre de 2010.
Não há pesquisador que conheça melhor o trabalho de Villas Bôas do que sua família. "O trabalho de Orlando era tão intenso que todos, não só eu, mas nossos filhos, Noel e Orlando Filho, mergulhamos juntos. Todos entramos na mata." Por 12 anos, entre 1963 e 1975, Marina deu sofrido expediente no Parque Indígena do Xingu - reserva que reúne 14 tribos em Mato Grosso, criada em 1961, maior realização dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas. Na selva, Marina viveu momentos impensáveis em tempos de estudante, na escola do Hospital Matarazzo. "A veia aventureira estava escondida."
Logo nos primeiros meses de Xingu, viveu a tensa situação de realizar primeiro contato com uma tribo desconhecida. "É o momento mais difícil. São meses acampados na mata, até que os índios, e só os índios, decidam fazer contato. Ninguém sabe a reação." O contato com a tribo txikão, naquele 1964, seria feito para convencê-los, simplesmente, a abandonar o local onde viviam. Estavam no caminho de futura rodovia, tinham de sair dali.
Após gritos de anunciação, lembra Marina, os índios irromperam da mata até a clareira onde a equipe estava - a curiosidade, intensa, foi representada em mãos, mãos, e mãos, de 50 índios, querendo tocar a pele de Marina, primeira mulher branca que viram na vida. "Nunca fui tão apalpada. Éramos quatro de nós, e 50 índios curiosos, a me tocar. Voltei ao acampamento e, aliviada, recebi um abraço apertado." Era Orlando, a retribuir, do modo mais terno possível, a proteção que a esposa lhe dava.
DE CONSULTÓRIO
Antes de chegar à reserva, Marina havia visto índios - um índio, na verdade - uma única vez na vida. "Quando atendi um indiozinho que fugiu da Ilha do Bananal, não podia imaginar que trabalharia com eles o resto da vida." Foi o próprio sertanista quem convidou a enfermeira - que trabalhava no consultório de Murilo Vilela, amigo de Villas Bôas - para integrar a equipe no Xingu. "Ele se tratava da malária, com vitaminas. Viveria com isso a vida toda. E eu, também."
Nos 33 anos em que foram casados, Marina ouviu do marido máximas como "precisamos salvar essa outra humanidade", "nunca vi índios discutindo" e a famosa definição de que, entre as tribos, "o velho é o dono da história, o índio é o dono da aldeia, a criança é dona do mundo" - incorporadas ao repertório da família. "O memorial servirá para cultivar a paixão pelas raízes", diz o filho Noel, que hoje dá palestras sobre a obra do pai.
Se Villas Bôas teve reconhecimento mundial - foi indicado duas vezes ao Prêmio Nobel -, o bairro da Lapa, para onde a família se mudou em 1989, também homenageou o ilustre morador. Após sua morte, em dezembro de 2002, foram criados no bairro um memorial e um busto, e batizados um anfiteatro (no Colégio Santo Ivo) e uma escola, todos em homenagem a Villas Bôas. "No Dia do Índio, a casa amanhecia cheia de cartazes no portão, feitos por crianças do bairro", conta Marina. A pedido da associação de moradores, foi criado projeto de lei para nomear o Complexo Anhanguera em homenagem aos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas - a proposta é que seja batizado Complexo Irmãos Villas Bôas, e que cada um dos três viadutos leve o nome de um deles.
Ao lado do sertanista por uma vida, Marina também recebeu homenagens - no Conselho Nacional de Enfermagem foi criado o Prêmio Marina Villas Bôas, pelos serviços no Xingu. Enquanto Marina esteve lá, quatro anos correram sem registros de óbitos infantis. Há ainda outra homenagem: no mês passado, soube que receberá o título de "Cidadã de Borborema". "É gostoso saber que nossa terra nos acompanha também."
No galpão nos fundos da casa,onde é realizada a catalogação, há capítulos importantes da história do País. "O que houve no interior entre 1943 (Marcha para o Oeste, tentativa do governo Vargas de ocupar o interior) e 1960 (inauguração de Brasília), datas mais lembradas? Pois está tudo aqui", diz Marina, apontando imagens e documentos. Contrastando com 40 fotos de índios nas paredes, estão pendurados oito quadros dos Villas Bôas. "Era o canto de trabalho de Orlando, o preferido dele." Ao centro, há uma foto da família toda - pai e filhos se abraçam, observados atentamente pela mãe, Marina, enfermeira dedicada a proteger, até hoje, a memória de Villas Bôas.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091004/not_imp445502,0.php

Um comentário:

Madureira disse...

Trabalhei num restaurante em Mairiporã, onde o Orlando sua mulher e o garotinho da foto, seu filho, frequentavam, isso no início da década de 80. Eles chegavam numa kombi azul que tinha o estepe colocado na frente do veículo. Servi eles muitas vezes e de vez em quando, Orlando me pedia um pedaço de papel toalha, pra limpar as grossas lentes de seu par de óculos.