quinta-feira, 10 de junho de 2010

INAMPI: O CABOCLO QUE AMOU UMA BÔTA

INAMPI: O CABOCLO QUE AMOU UMA BÔTA


Inampi:

O caboclo que amou uma bôta


* Por João Américo Peret

Essa história com sabor de lenda amazônica nos foi narrada por Inampi,um caboclo Mura que vive nas barrancas do rio Urubu, município de Itacoatiara, Amazonas.

Inampi não tem “idade” porque não sabe quando nasceu. Ele como a maioria dos caboclos amazônicos, é de “pouca fala”, porque o seu linguajar é mais interior; ele é introspectivo e sua mente está impregnada de fantasias do sobrenatural,provocadas pela fantástica e misteriosa natureza.

Inampi acredita que viveu a estória que raramente conta a alguém, com receio de não ser levado a sério.Nós a conseguimos com muito custo e vamos reportá-la com o máximo de detalhes que ele nos deu :

-Eu estava esquentando o sol (tomando banho de sol) para criar coragem de mergulhar no lago . Este só não estava totalmente espelhado porque uns botos brincavam soprando para o ar e “banzeirando” às águas.

Criei coragem e mergulhei com os olhos abertos, vendo os fachos de sol varando as águas transparentes até o fundo do lago. Quando eu estava lá embaixo, surgiu, também mergulhando,uma cabocla totalmente nua. Ela aproximou-se de mansinho e segurou em meus braços suavemente e juntou seu corpo moreno ao meu. Ficamos assim por um instante. Mas este pareceu longo. Quando comecei a subir para respirar, ela soltou-me e sumiu como uma bolha de ar, ploft...

Cheguei à superfície e fiquei boiando, e esperando que ela também subisse. Ela não apareceu, apenas os botos continuavam a brincar. Desconfiado, nadei para a beira e fiquei na praia com uma esperançazinha de que ela chegasse. Ela não apareceu...

Fiquei desconfiado e pensando nas estórias que contavam de que boto virava gente e encantava pessoas. Voltei para casa meio cismado e não contei nada a ninguém,com medo de que não me acreditassem.

À noite sentei-me na rede e fiquei pensando, pensando no caso... Depois, quando o sono queria me pegar, escutei uns assobios lá fora.

Fuiiu, fuiiu...

Curioso, abri a janela para espiar... lá fora, no meio do terreiro, estava “Ela” e acenou-me chamando.

Um pensamento atravessou minha cabeça: “Ela é tucuxi”, uma bota, não pode ser outra pessoa... Quando cheguei, “Ela” me sorriu,deu a mão e caminhamos juntos até a praia.

A princípio, fiquei assustado. Mas depois comecei a corresponder aos seus carinhos e esqueci a estória de encantamento, “boto vira gente”... pra me entregar ao amor.

Depois de algum tempo “Ela” me perguntou:- “Você quer conhecer minha gente?...”

Confesso que senti um sobressalto. Mas “Ela” conteve meu receio, acariciando-me e falando meigamente: “Não tenha medo, eu garanto que nada de mau acontecerá...” – Sendo assim,concordei.

“Ela” falou: - “Acompanhe-me e feche os olhos por um instante”. Fechei, e então senti como se um cortinado estivesse sendo colocado sobre minha cabeça enquanto caminhávamos em direção ao lago. Mas, a água não me molhava. “Ela” falou: “Pode abrir os olhos”.

Quando abri os olhos fiquei espantado e surpreso; já havíamos atravessado as águas sem nos molhar e a superfície do lago estava por cima de nós, como se fora de plástico transparente, deixando ver as estrelas e a lua. Chegando ao fundo do vale submerso, encontramos uma verdadeira cidade,como as nossas: cheia de ruas e casas,as pessoas e os animais também eram iguaizinhos como aqui. Chegamos a sua casa e “Ela” me apresentou a duas irmãs e à mãe.Todos agiam com muita naturalidade. E isso era incrível para qualquer um... Depois fomos para um jardim e ficamos namorando. Haviam outros casais.

Diante da visão do mundo exterior da superfície que também podíamos contemplar lá de baixo, quase me esqueci que estávamos sob as águas. Quanto tempo passamos assim eu não sei. Depois eu pedi que “Ela” me levasse de volta a superfície. “Ela” fez um muxoxo de quem não queria voltar logo e sussurrou-me: - “Fica mais um pouquinho. Será que você não está gostando de mim?...”

Argumentei que estava precisando descansar e que outro dia voltaria se “Ela” fosse à superfície me buscar. “Ela” concordou e voltamos subindo as encostas do barranco, e quando já estávamos próximos a superfície do lago “Ela” me mandou fechar os olhos. Finalmente chegamos a praia.

Ficamos juntos ainda um pouquinho e “Ela” me levou até próximo a minha casa, esperou que eu entrasse e saiu cantarolando uma canção em direção à praia. Depois escutei um baque de alguém se atirando no lago e novamente o barulho dos botos arfando e batendo n’água.

Deite-me e fiquei “cismando” muito tempo antes de dormir. No dia seguinte não tive coragem de contar o fato a ninguém,porque não iriam-me acreditar...

A estória se repetiu durante várias noites e eu já estava conhecendo muita gente de lá de baixo, da “cidade submersa”. Então,”Ela” me fez essa pergunta.

- você quer morar comigo aqui em nosso mundo?..
- Ainda não estou certo, gosto muito de viver lá fora na superfície com minha gente...respondi

Aquele foi o momento da decisão, porque a mãe dela escutou nossa conversa e interrompeu: - acho melhor você deixar esse namorado de lado,ele não gosta de você!”

Depois que “Ela” me trouxe de volta nunca mais veio me procurar.
E foi uma pena, porque se “Ela” voltar a me procurar eu irei definitivamente para a “cidade submersa” no fundo desse lago do rio Urubu.

Assim, Inampi revelou seu segredo, que embora soe como lenda, ele afirma: - “Pode acreditar tintim por tintim nessa estória, porque é a mais pura verdade: Eu amei uma bota!”...



* João Américo Peret, um dos maiores indigenistas do país trabalhou na equipe de sertanistas do SPI/Funai (1950-1970), conviveu com o Marechal Rondon e foi discípulo de Malcher, Heloisa Torres e Eduardo Galvão. Colaborador de vários antropólogos em pesquisa nas aldeias indígenas, o carioca João Américo Peret foi colega e conviveu com os sertanistas irmãos Villas Boas, Francisco Meirelles e Gilberto Pinto. Realizou contatos com índios isolados e teve ativa participação na vida de milhares de índios brasileiros, ao criar postos de assistência e indicar áreas que deveriam ser convertidas em Reservas Indígenas. Em 1968 encontrou a “Expedição Calleri”, então desaparecida no Amazonas. Realizou inquéritos, sindicâncias e pesquisas nas aldeias visando melhorar a administração e assistência aos índios. Esteve no Monte Roraima e nas malocas de Raposa e Serra do Sol em Roraima. Após deixar a Funai continuou auxiliando os índios com projetos voltados às suas aldeias. É arqueólogo, escritor, jornalista, acadêmico, roteirista cinematográfico, fotógrafo. Participou da exposição “500 anos de Brasil” no exterior e criou uma ilustração para a moeda de prata comemorativa de cinco reais e para a cédula de dez reais de plástico, cuja imagem traz ilustração de um índio. Ao lado do também legendário Darcy Ribeiro, participou da criação do Museu do índio e da criação da “Comissão Pró-índio, no Rio de Janeiro, onde reside. Atualmente, João Américo Peret participa do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (CEBRES), organização voltada às questões indígenas e problemas de fronteiras.

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